08/04/2015

Niède Guidon desabafa e diz que foi 'burra em ter voltado para o Brasil'

O local é repleto de cupins, mas é a burocracia brasileira a principal ameaça

Patrimônio Cultural da Humanidade, o local cujo primeiro projeto turístico foi feito pelo suíço Robert Jacquard, já falecido, corre o risco de fechar devido a falta de recursos e de prioridades com que é tratado pelo governo brasileiro, além da falta de apoio estrutural dos municípios do seu entorno.

A demora para concretização de qualquer projeto que envolva o governo é inexplicável. Os problemas se acumulam desde a dificuldade de verbas para pagamento de funcionários à interminável construção de um aeroporto que se arrasta por quase duas décadas sem nenhuma explicação cabível. Nos seus limites, cidades sem infraestrutura, uma população pobre e governos municipais sem visão para a exploração turística sustentável também servem de ameaça.

Situado em uma área de mais de 100 mil hectares em uma região de caatinga e quase mil sítios arqueológicos registrados, o parque se mantém aberto graças a luta incansável da arqueóloga Niéde Guidon. Maior do que qualquer incompetência de gestão pública, a determinação dessa cientista, apoiada por instituições de ensino e pesquisa internacionais, principalmente da França, procura manter o foco não só na preservação do parque, como na sua transformação em um polo turístico que traga desenvolvimento à toda região.

Na entrevista a seguir, embora ela própria se diga desacreditada de medidas do governo para resolver os problemas e afirme ter errado em tentar fazer do parque uma referência, suas atitudes falam o contrário. Todo o seu tempo é dedicado ao perfeito funcionamento e preservação da riqueza arqueológica do local.
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Mas na sua guerra diária, uma frase no portal à frente da sua casa parece dar a dimensão do entendimento da luta. Um trecho do Cântico do Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, alerta aos desavisados que se aproximam: “Lasciate ogni speranza voi che entrate!”. Ou, em bom português: “Deixai toda esperança, vós que entrais!”.

swissinfo.ch:Como foi feito o projeto turístico do Parque Serra da Capivara e por que por um suíço, o Robert Jacquard?

Niéde Guidon: O governo brasileiro criou o parque (1979) e deixou lá, sem funcionários, sem nada. As pessoas passaram a entrar no local para tirar madeira e caçar. Diziam: “Se é do governo, é nosso”. Não havia ninguém para tomar conta. Precisávamos ter recursos. Criamos, então, a Fumdham, a Fundação Museu do Homem Americano (1986). Como não era a minha especialidade tomar conta de um parque, falamos com Enrique Iglesias, então presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Ele visitou a região e mandou técnicos fazerem um estudo para organizar o local e torná-lo autosuficiente. A ideia era que fosse um exemplo de como a proteção da natureza e a cultura poderiam desenvolver uma região, que era miserável.

O que fizeram?
N.G.: Eram dois. Ficaram aqui um mês, estudaram toda a região, fizeram um relatório dizendo que a área não teria viabilidade econômica com agricultura e criação de animais, devido ao sol e a terra muito salgada. Aqui já foi mar! Mas eles relataram que o local tinha um potencial turístico muito grande. Foram eles que nos aconselharam a entrar em contato com a Suíça, pela maior capacidade dos suíços em preparar projetos de turismo.
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Como isso se deu efetivamente?
N.G.: Não lembro exatamente. Faz muito tempo (1995). O Robert Jacquard veio como um consultor, ficou aqui um ou dois meses e fez o projeto. Dissemos que não queríamos o tipo de turismo que em geral existe no Brasil: aquela concentração de pessoas andando no mesmo lugar, aquela bagunça como no Cristo Redentor (Rio de Janeiro). Então ele nos explicou como deveria ser feito e deixou um plano pronto.

O projeto ainda existe?
N.G.: 
Naquele momento ainda não existia as instalações que temos hoje. Era uma casa pequena no centro da cidade. Todo o material estava em pastas, em prateleiras. Eu dava aulas em Paris e só vinha aqui nas férias. Só que a região tem muito cupim e eles comeram tudo. Procurei uma cópia em Brasília, mas lá nem sabiam onde tinha sido arquivado.

Mas como foi implementado?
N.G.: O original foi perdido, mas nós já tínhamos colocado em funcionamento tudo. Tínhamos, inclusive, desenhado como seria, pois Jacquard tinha nos aconselhado a fazer várias rotas turísticas, de maneira que podíamos distribuir os grupos para não causar uma grande concentração de pessoas.

Como está hoje?
N.G.:  Por falta de dinheiro, temos de fechar várias trilhas, pois no entorno do parque eram 28 guaritas, todas equipadas com rádio, algumas com energia solar. Se houvesse barulho de caçador, cachorro ou tiro, o pessoal na guarita poderia chamar a central, porque estava tudo interligado. Hoje só temos nove abertas e vamos fechar mais quatro guaritas.
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O que caçam?
N.G.: Tudo. Antigamente, quando começava o período de seca, os animais iam para a Serra das Confusões, a 100 km daqui. Quando voltava a chover na Serra da Capivara, os animais retornavam. Agora não podem mais fazer isso, porque está cheio de assentamentos entre os dois parques, em uma área que antes ninguém tinha título de propriedade. Porém, os políticos viram isso e colocam terras em seus nomes. Há fazendas enormes que eram terrenos públicos. Com isso, os animais que saem da área são mortos. Para protegê-los, fizemos uma quantidade grande de depósitos de água. Durante a seca, mantemos água ali o tempo todo para eles não saírem. Assim conseguimos reconstituir a fauna. Hoje há mais onças aqui por quilômetro quadrado do que no Pantanal. Porém, sem as guaritas, tudo pode acabar. Temos 400 quilômetros de estradas para garantir tanto a visitação quanto a proteção, mas estrada que não é conservada, depois da chuva, acaba!

400 quilômetros é a quase a distância entre São Paulo e Rio
N.G.: Pois é! Um trabalho grande que fizemos, sendo no início todo financiado pelo Banco Interamericano. Foram mais de US$ 2 milhões, desde a década de 1990 até o início dos anos 2000. A França também ajudou muito, depois organismos brasileiros.

Como ajudaram exatamente?
N.G.: Existia a Lei Rouanet (lei de incentivo fiscal) e tinha também a Compensação Ambiental (mecanismo de política pública que permitia a incorporação de custos sociais e ambientais da degradação gerada por determinados empreendimentos nos custos globais da empresa). Muitas dessas empresas nos escolhiam.

Como quais?
N.G.: Tinha a Vale do Rio Doce, a Petrobras, muitas dessas grandes empresas. Quando Lula (o ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva – 2003 a 2011) entrou no governo, criou o Fundo da Compensação Ambiental, e as firmas passaram a ser obrigadas a depositar os valores em uma conta em Brasília. Quer dizer, caiu na mão do governo, já era, porque Brasília não tem fundo! Então, agora, recebemos muito pouco. A Petrobras nos repassava mais de R$ 2 milhões por ano. Em 2014, fomos informados que seria reduzido para R$ 1,1 milhão. Somente em Dezembro é que nos mandaram R$ 480 mil! E ainda dividido em parcelas! Ou seja, passamos 2014 sem dinheiro. Foi muito difícil. Tínhamos 270 funcionários. O ideal seria 400. Estamos com cerca de 80 e teremos de mandar embora uns 40 ou 50.
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A senhora doou parte de um prêmio de R$ 300 mil para finalização do aeroporto daqui cujas obras se arrastam por mais de duas décadas. Como está?
N.G.: Coloquei R$ 200 mil e até hoje não foi homologado. Dizem que a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) demora até um ano para homologar. Agora veja, este aeroporto, pago com dinheiro público, que estava registrado como particular. Você está entendendo como funciona aqui?

O que o Brasil perde com o risco do fim do parque?
N.G.: O Brasil perde, a região perde, o Piauí perde a possibilidade de deixar de ser um estado miserável que é. Eu estive na Unesco em 2013. Eles me disseram que todos os patrimônios da humanidade recebem, no mínimo, entre 5 e 6 milhões de turistas por ano. Aqui, recebemos 25 mil turistas. O acesso é difícil, não tem hotéis bons. O presidente da Union de Banques Suisses (UBS) esteve aqui, queria fazer um hotel seis estrelas, mas quando viu a estrutura disse que só quando o aeroporto estiver pronto. O diretor do Hyatt International também.

Há muitos estrangeiros trabalhando no parque?
N.G.: Temos a missão francesa, porque em 1978, considerando a importância da região, a França criou uma missão oficial que é mantida pelo Ministério das Relações Exteriores da França. Essa missão, da qual fui chefe, continua até hoje, sendo dirigida por um colega, professor em Paris. Ele vem anualmente aqui com os alunos. A Embaixada da França, vendo as notícias sobre a falta de recursos, acaba de nos doar um carro, que também atende a missão.

A senhora conversa com o pessoal do governo?
N.G.: Nada. Em abril de 2013, tive uma entrevista com a Marta Suplicy, então Ministra da Cultura. Levei um relatório com a estrutura do parque, o que eu precisava para mantê-la, a importância de ser patrimônio da humanidade. Ela me recebeu, chamou a presidente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), uns 20 chefes de departamento. Disse que o dinheiro seria mandado. Isso em abril de 2013. Em novembro de 2014, mandaram R$ 500 mil (valor para ser usado ainda na preparação de sítios para serem visitados e para pagar funcionários). Agora inventaram ainda esse negócio do Siconv (sistema para cadastrar e gerenciar convênios e contratos de repasse).
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Como funciona?
N.G.: Não consigo saber. Eles põem dinheiro em uma conta, mas a fundação não pode usar. Por exemplo, tínhamos uma política de pegar funcionários e firmas locais com o objetivo de ajudar a desenvolver a região. Agora não pode. Temos de divulgar no portal da fundação para que pessoas do Brasil inteiro se candidatem. Depois, quando o serviço for aprovado e feito – e pode nem ser pela qualidade, mas pelo preço –, apresenta-se a nota, o dinheiro vai para o banco, e o banco é que paga diretamente. Tudo pela internet! Agora veja! Aqui chegamos a ficar uma semana sem que a internet funcione!

Como funciona a colaboração das instituições estrangeiras?
N.G.: Elas colaboraram. Mas agora precisamos de recursos para pagar funcionários. Nenhuma organização internacional vai pagar funcionário. Estava na hora do governo brasileiro, que recebeu tudo isso, cuidar do parque! O que foi gasto chega a uns US$ 5 milhões! Realmente (o descaso) é prova de uma burrice extrema. O país não tem infraestrutura. Estamos com um telefone que não funciona ou funciona mal, a energia vive caindo, as estradas cheias de buracos…

Os moradores têm consciência da importância do parque?
N.G.: Eles veem que o parque traz dinheiro para a região. Mas o Brasil não entende que isso aqui é um patrimônio da humanidade, que há um acordo com a Unesco.

E não pode ser penalizado por isso?
N.G.: Como? O que a Unesco pode fazer? Nada! A Unesco também não tem mais dinheiro desde o novo presidente, que entrou, nomeou toda a família, amigos…

É possível dar uma ideia do seu sentimento como cidadã?
N.G.: Isso aqui é uma coisa fantástica, algo único! Temos 942 sítios com arte rupestre! Onde é que existe isso no mundo?! Fizemos estradas para que turistas pudessem ver tudo, mas agora não podemos manter as estradas. Deixei minha vida em Paris, meus amigos, vim aqui para quê? A minha médica diz que eu estava com depressão. Não é depressão, não! Apenas fiz a análise científica da minha vida e me dei conta de que não fui uma pessoa inteligente o suficiente para ter entendido que no Brasil não dá certo querer trabalhar honestamente e de uma maneira correta. Fui burra de ter voltado para o Brasil.
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A PESQUISA QUE MUDA A HISTÓRIA
Filha de pai francês e mãe brasileira, Niéde Guidon nasceu em Jaú, interior de São Paulo. Depois de ter se formado em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP), foi para Paris estudar Arqueologia. Anos depois, novamente no Brasil, onde foi aprovada em primeiro lugar em um concurso para lecionar na USP, foi denunciada como comunista e obrigada a deixar o País, em 1965.

Em 1973, membro da Missão Arqueológica Francesa, Niéde passa a vir anualmente ao Brasil, para pesquisar os sítios arqueológicos de São Raimundo Nonato. A partir daí começa um trabalho incansável pela preservação da região. Seus achados arqueológicos mudam a história do homem no continente americano. Isso porque a teoria conhecida até então apontava que os primeiros humanos chegaram ao continente por volta de 15 mil anos, vindos do Estreito de Bering. 

As pesquisas de Niéde identificam a presença humana no local há 100 mil anos, e muda a perspectiva da pré-história americana. Pela técnica do carbono 14, a pesquisa da Dra. Niéde chegou a data de 58 mil anos. Abaixo desse período, os vestígios encontrados foram datados pela técnica da termoluminescência, quando se chegou a idade de 100 mil anos. A partir de 1991, as pesquisas na Serra da Capivara apresentam evidências irrefutáveis de que os vestígios encontrados estavam ligados ao Homo sapiens.

Junto com a pesquisadora Anne-Marie Pessis, Niéde Guidon montou todo o estudo apresentado à Unesco, que em 1991 declarou por unanimidade a Serra da Capivara como Patrimônio Cultural da Humanidade. No Museu do Homem Americano, também criado por ela, o turista encontra todas as informações sobre seus trabalhos, assim como as provas. Muitos dos artefatos encontrados nos sítios arqueológicos, como crânios, esqueletos, urnas funerárias e ossadas de animais pré-históricos podem ser vistos no local, que embora pequeno dispõe de infraestrutura de ponta para receber visitantes de todo mundo.

Fonte: Com informações do São Raimundo.com e swissinfo.ch/Via 180

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