Modelo de gestão da Serra da Capivara parece chegar ao fim.
(Crédito: André Pessoa)
Tombado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO e prestes a completar 40 anos de criação em 2019, o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, enfrenta a sua mais aguda crise. Nessas últimas décadas a unidade de conservação federal que, sem dúvidas, quase unanimidade, é modelo de gestão de reservas arqueológicas no Brasil e no mundo, nunca esteve tão ameaçada. O índice de combate à caça é o pior desde 1995.
A falta de recursos oficiais que sempre marcou a história dos parques brasileiros permanece e, claro, pode comprometer o maior conjunto de pinturas rupestres das Américas. No entanto, o mais grave agora é a iminente saída de cena da sua principal defensora. Niéde Guidon, 86 anos, professora aposentada pela Universidade de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, quase quatro décadas de dedicação exclusiva ao parque cedida pelo governo francês, sem nenhum tipo de remuneração do governo brasileiro, não recebe o reconhecimento em seu próprio país e vai, aos poucos, deixando a linha de frente da batalha.
Sua obra é incrível. O parque que ela sonhou, planejou e fez acontecer encanta, é orgulho do brasileiro, têm infraestrutura comparável às melhores reservas naturais do planeta, gera emprego e renda numa das regiões mais discriminadas do Brasil, o semiárido nordestino. Com mais de 450 quilômetros de estradas internas, centenas de sítios arqueológicos, mais de 200 deles com infraestrutura, sendo 17 acessíveis para portadores de necessidades especiais, 28 guaritas de fiscalização e atendimento aos turistas, dezenas de condutores de visitantes locais formados por um grupo de pesquisadores altamente capacitados que estudam a sociedade local da pré-história aos dias atuais.
Com os pés no chão, as mãos escavando o passado e a cabeça focada no futuro, Niéde criou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), entidade científica que teve a coragem de pedir socorro ao mundo "civilizado" captando investimentos no Brasil e no exterior e aplicando os recursos na estruturação, manutenção e proteção de um parque diferenciado, frágil, onde a menor mudança em seus ecossistemas pode comprometer a sua riqueza cultural e natural. Os sítios milenares com pinturas rupestres dependem de variados fatores para a sua conservação, mas sobretudo de fauna e flora equilibradas. Um tatu retirado da mata pode contribuir para aumentar as populações de insetos que constroem casas, caminhos e ninhos por cima das pinturas. Uma árvore derrubada na frente de um sítio arqueológico permite que a luz solar atinja o suporte rochoso onde nossos ancestrais pintaram danificando sua arte altamente refinada e frágil, apesar da conservação natural ao longo do tempo.
Niéde Guidon e crânio da Serra da Capivara (Crédito: André Pessoa)
Biodiversidade e conservação
Com tantos fatores preocupantes e a omissão do IBAMA seguida pelo ICMBio, a instituição científica foi "obrigada" a assumir o dia a dia da reserva federal administrando o Parque Nacional da Serra da Capivara em regime de cogestão. Nesses últimos anos, um total de 449 reservatórios de água naturais e artificiais foram construídos ou identificados e georreferenciados, com capacidade de estocagem de água e acessibilidade à fauna avaliada através de um amplo programa de manejo da água para fauna, com a limpeza de reservatórios naturais e a construção de microbacias de drenagem e bebedouros para mitigação de conflitos entre homem e predadores. Para Niéde, evitando os animais de sair do parque em busca de água e alimento, o índice de caça diminui.
(Crédito: André Pessoa)
Devido à escassez de água na região do parque, foi feita a perfuração de um poço com 953 metros de profundidade em parceria com o CPRM, em propriedade da FUMDHAM, com instalações realizada em parceria com o Ministério do Meio Ambiente para o abastecimento das guaritas do parque e bebedouros artificiais e naturais durante a seca. Um imenso Centro de Visitante, com exposição permanente de acervo paleontológico da região e loja com artesanatos e materiais de divulgação da reserva, além de lanchonete também foi construído em terreno doado pela FUMDHAM, e nada menos que 1.100 sítios arqueológicos foram descobertos e cadastrados na área do parque nacional, sendo 73 desses sítios arqueológicos escavados.
No total 9 áreas foram preparadas para picnics e um belo anfiteatro ao ar livre foi projetado e construído na Pedra Furada, com palco e sistema de iluminação, onde se realiza, anualmente, festivais de cultura nacionais e até internacionais. Aproximadamente 76 pessoas trabalham diretamente envolvidas na manutenção de estradas, bebedouros, sítios, manutenção e proteção. Um Plano de Manejo foi elaborado em 1991 bem como um Plano de Ação Emergencial em 1994. Em 2018, técnicos e cientistas da FUMDHAM participaram da Oficina do Plano de Manejo até hoje não implantado em função da burocracia do órgão ambiental. Seu banco de pesquisa já possui mais de 100 dissertações e teses com mais de 1.800 artigos científicos publicados. A FUMDHAM também contribuiu com o auxílio no combate a incêndios em 1996, 2010, 2015 e 2017. Nessas últimas décadas, a instituição vem fazendo os serviços de limpeza das guaritas, Centro de Visitantes e retirada do lixo de todo o Parque Nacional dando um descarte adequado aos resíduos. (A.P.)
(Crédito: André Pessoa)
Geração de renda local
Infelizmente, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), um pedacinho da máquina estatal tupiniquim, criado em 2007 para supostamente gerenciar as unidades de conservação federal, ao longo desses poucos 11 anos se tornou um antro de burocracia, falta de competência e omissão. Foi engolido pela falta de recursos, de apoio politico e institucional, mas sobretudo pela incapacidade de superar obstáculos. Se rendeu covardemente. Virou uma espécie de corporação conservadora que se pauta apenas por interesses próprios e pelas disputas de poder entre seus agrupamentos.
Metade do seu orçamento anual é utilizado para pagamento da folha dos funcionários inativos e "ativos", os mesmos que, portando armas e o "poder" do Estado se negam a combater os crimes ambientais ou proteger os ecossistemas pelo Brasil afora. A tarefa, na realidade, ficou para os ambientalistas que, sem armas e sem nenhuma proteção, literalmente morrem para defender nossos ambientes naturais. Os 50% restantes da verba destinada ao órgão são gastos em e por Brasília, dividido entre as mais de 334 reservas federais, de norte a sul, de leste a oeste. O Parque Nacional da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, é o "exemplo" de sucesso defendido em nota oficial pelo ICMBio.
Para boicotar a gestão de renome internacional implantada na Serra da Capivara, os "diplomatas" ao avesso da autarquia que se diz ambiental enchem a boca para afirmar que mais de três milhões de turistas visitam o parque carioca anualmente contra o insignificante número de 20 mil que vão ao interior do Piauí para conhecer a Caatinga, com seus vestígios da pré-história americana.
Propositalmente, omitem, é claro, que mais de 90% dos visitantes que vão na floresta da Tijuca para conhecer unicamente o Cristo Redentor nem sabem que estão dentro de uma unidade de conservação. É para sorrir? Não! É para chorar. A autarquia federal criada para "defender" o meio ambiente usa o número de visitantes como referência de gestão, não a conservação da biodiversidade ou a preservação do seu patrimônio natural, cultural, biológico, geológico, entre tantos outros.
Sem argumentos, o ICMBio costuma acusar a FUMDHAM de “gastar muito”, de “manter um parque de primeiro mundo” numa região considerada das mais pobres do semiárido. São ideias ultrapassadas, que tentam igualar as unidades de conservação por baixo. Ou seja, ao invés de pegar o que deu certo como exemplo, preferem acusar o positivo, o exemplar, o inovador de estar errado. Parecem ter medo de defender uma reserva federal que mostra efetivamente como preservar o meio ambiente e sua biodiversidade gerando emprego e renda para as comunidades locais. Sem dúvidas, chegou a hora do Governo Federal repensar o papel de órgãos como o ICMBio e o IBAMA que se perderam ao longo do tempo, presos por sua incapacidade de reconhecer o novo e superar os obstáculos.
Do outro lado da trincheira, Niéde sempre foi afrente. Mobilizou a sociedade de tal forma que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) seccional Piauí, ingressou com pedido na Justiça Federal para garantir a integridade do parque. A Justiça Federal e o Ministério Público Federal reconheceram a FUMDHAM como efetiva gestora do Parque Nacional da Serra da Capivara e concordaram com a ação bloqueando R$ 4 milhões do Governo Federal para a manutenção da reserva. Uma primeira parcela foi liberada e integralmente aplicada na unidade de conservação. Mesmo assim, o ICMBio vem continuamente recorrendo da ação e emperrando a liberação dos recursos. É a única autarquia federal que perdeu, por incompetência, seu status. (A.P.)
Fonte: 180
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